Fraude nos consignados e a falha do Estado em proteger o servidor

*Murilo Gonçalves

A discussão sobre as irregularidades envolvendo empréstimos consignados em Mato Grosso não pode ser tratada como um conflito privado entre servidores e instituições financeiras. Por trás das denúncias, surge uma questão central e inescapável: qual é a responsabilidade do Estado quando fraudes acontecem dentro do próprio sistema de consignações que ele administra?

O consignado não existe sem a participação direta da administração pública. É o Estado que credencia instituições financeiras, define a margem consignável, controla o sistema informatizado, retém valores de natureza alimentar dos servidores e os repassa ao banco. Por isso, quando surgem irregularidades, não é plausível atribuir a responsabilidade apenas às empresas. Se o Estado integra todas as etapas da operação, também integra a cadeia de proteção ao servidor consumidor, como reconhece o Código de Defesa do Consumidor.

Em Mato Grosso, desde 2023, sindicatos e a federação dos servidores passaram a relatar descontos indevidos, valores creditados muito inferiores aos contratados, dificuldade para obter cópias de contratos, resistência de empresas em permitir quitação antecipada e irregularidades no credenciamento de instituições financeiras. Mais de 200 reclamações foram formalizadas naquele ano. Em 2024, 22 ofícios foram enviados à Seplag, à Desenvolve-MT e à Casa Civil, todos alertando para a necessidade de medidas urgentes de fiscalização.

Ainda assim, as respostas não vieram com a rapidez e a profundidade que a gravidade do cenário exigia. A ausência de ação efetiva permitiu que práticas abusivas se expandissem, atingindo milhares de servidores, muitos deles com renda comprometida e saúde emocional abalada. Professores, policiais, profissionais da saúde, técnicos e administrativos viram sua subsistência ameaçada por operações irregulares que poderiam ter sido estancadas na origem por mecanismos de controle mais eficientes.

Esse contexto evidencia a necessidade de discutir o papel constitucional da administração pública. A Constituição impõe ao Estado os princípios da legalidade, moralidade, eficiência e publicidade. A Lei de Acesso à Informação exige transparência. A Lei 14.133/2021 impõe rigor no credenciamento e fiscalização de fornecedores; e o CDC protege o servidor como consumidor em operações de crédito/empréstimos. Além disso, quando o Estado credencia uma empresa, transmite ao servidor a mensagem de que aquela instituição foi avaliada e é confiável. Se posteriormente se descobre que a empresa operava de forma abusiva, e que alertas eram conhecidos sem que providências efetivas fossem adotadas, configura-se falha no dever de vigilância.

Também é importante reconhecer que o Estado não atua apenas como ente regulador, mas como parte indispensável da própria operação financeira. Sem o desconto em folha executado pelo sistema público, sem o repasse direto ao banco e sem a gestão informatizada da margem consignável, o consignado não existiria. Isso reforça a responsabilidade estatal quando práticas irregulares se consolidam dentro do seu próprio ambiente administrativo.

O ponto mais sensível dessa crise é humano. Servidores relataram adoecimento emocional, perda de renda, dívidas impagáveis e instabilidade familiar. E quando o servidor adoece, o serviço público adoece junto. A sociedade sente a deterioração, especialmente os mais pobres, que dependem de serviços públicos fortes, estáveis e eficientes.

Não há saída institucional sem responsabilização. Empresas que praticaram abusos devem ser punidas nos termos da lei. Servidores lesados precisam ser reparados. E o Estado deve reconhecer sua parcela de responsabilidade, apurando eventuais omissões de seus agentes, fortalecendo seus mecanismos de controle, aprimorando os sistemas de consignação, revisando credenciamentos, ampliando a transparência e respondendo de forma tempestiva a qualquer indício de risco.

O consignado é uma ferramenta importante de crédito. Para continuar existindo de forma segura, precisa de um Estado que cumpra seu papel. Proteger quem sustenta a administração pública não é concessão, é dever. E a integridade dos servidores é condição essencial para que a máquina estatal funcione e para que a sociedade confie nas instituições que a representam.

*Murilo Gonçalves, servidor público e advogado com atuação em direito público, integrante do AFG & Taques Advogados Associados.