Entrevista com Antonio P. Pacheco, autor de “O Rio do Meu Quintal”

“O Rio do Meu Quintal” mistura memória, ficção e história. De onde nasce esse livro e que travessia ele representa na sua trajetória literária e pessoal?

Antonio P. Pacheco – A ideia do livro surgiu da percepção de que eu sou um homem de dois séculos, o XX e o XXI. Perece bobagem. Mas, a minha geração é a última geração analógica do planeta. E isso tem um peso gigantesco. Vivemos em uma era em que a memória já é digital. O que as pessoas não percebem é que memória digital, gravada em código binário, em blocos de bits, é frágil e pode ser destruída pelo tempo, por descargas eletromagnéticas, por falta de energia elétrica, enfim. Já a memória orgânica, real, essa nunca se perde se a salvamos de algum modo em um caderno, em um livro, em um pedaço de papel, em uma pedra ou casca de madeira, um pedaço de couro, em algo sólido, entende? Outro dado motivador da escrita deste livro: a perda acelerada que as crianças sofrem da liberdade de serem apenas crianças, de viverem a vida com os pés no chão e a cabeça nas nuvens, nos sonhos, na imaginação. Eu queria que meus netos pudessem, um dia, saber que crianças já foram seres livres para sonharem, para se divertirem, aprenderem, sofrerem, caírem, se machucarem e até se curarem por conta própria, amando a si mesmos, a natureza, os parentes, amigos, e sendo amados sem neuroses, sem complexos. “O Rio do meu Quintal” tem essa importante missão: ser um repositório de memórias, sentimentos, emoções, feitos e fatos reais e imaginários que sustentam um ideal de liberdade, uma ideia ingênua, mas sincera, de que a vida é mais bela do que as tragédias e decepções cotidianas a faz parecer nos dias atuais. Como obra isolada na minha trajetória, tem a mesma importância dos livros anteriores. Se há algo que possa distingui-la das outras que já publiquei é apenas o fato de que a personagem é uma criança que olha o mundo com o mesmo olhar de espanto e encantamento com que eu olhei um dia e sigo olhando.

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O protagonista Quinho vive entre as fronteiras da infância, da imaginação e dos grandes acontecimentos do país nas décadas de 60 a 90. Quais são as memórias ou experiências que mais moldaram essa narrativa?

A. P. Pacheco – No campo da realidade, há alguns acontecimentos impactantes da história do mundo e do Brasil que marcaram e que são determinantes na trajetória e na formação de Quinho, a personagem central do livro. O primeiro destes fatos foi a chegada do homem à lua. Aquele foi um momento em que o mundo inteiro entrou em suspenso, entre chocado e maravilhado, incrédulo e apavorado com a capacidade do ser humano de invadir os domínios de Deus, anjos e seres mitológicos: o espaço sideral. Foi um rompimento de todos os limites que até então pareciam manter os homens conectados à terra, enraizados neste mundo, na própria realidade material. O segundo fato é a ditadura militar, o poder de vida e morte dos senhores de farda, a opressão, o silêncio, os desaparecimentos, o exílio, o aprisionamento de movimentos e pensamentos. E por fim, o terceiro fato histórico foi a conquista do tricampeonato mundial de futebol pela seleção brasileira. A vitória da seleção na Copa do México em 1970 marcou os brasileiros como ferro quente, reativando seu espírito de coletividade, de Nação, de integridade e reviveu no povo a capacidade de sonhar, de acreditar em si mesmo, superar as adversidades, encarar os desafios e superar as próprias limitações mesmo lutando contra adversários mais fortes. Mas, sem dúvida alguma, dos três fatos, o de maiores consequências e impactos foi a ditadura militar que perpassa toda a infância e adolescência da personagem. A ditadura não apenas toldou o horizonte da personagem, ela interferiu profundamente na realidade na qual Quinho se vê tragado quase a ponto de se afogar. Não trato no livro diretamente da política, da ditadura e suas ideologias, mas, a trajetória das personagens é atravessada pelos seus impactos e isso repercute no modo como o menino vê o mundo à sua volta e passa a se comportar nele.

Seus livros anteriores — “O Universo no Espelho – Aqueles Outros e Suas Versões das Histórias” e “Versos Náufragos em Rio sem Margens” — mostram um escritor que transita por múltiplas linguagens. Como você percebe a relação entre esses livros e sua nova obra?

A. P. Pacheco – Eu não sou capaz de formular uma relação objetiva entre as minhas obras. Seria muita arrogância minha ditar um modo de interpretá-las. O único padrão que reconheço proposital nas minhas obras literárias é o fato de que todas tratam de invenções que buscam se libertar de rótulos do tipo: “é isto” ou “é aquilo outro”. Não faço literatura experimental e nem escrevo para nichos. Faço literatura humana, para seres humanos, leitores comuns, que gostam de uma boa história, de uma boa narrativa, com uma pitada de provocação e outra de reflexão misturada à diversão. Claro, todo escritor ambiciona conquistar seus leitores, contribuir de algum modo para que a cultura satisfaça o direito do indivíduo ao exercício de sua inteligência e fruição de seu próprio intelecto, de sua própria capacidade de imaginação e interpretação do mundo à sua volta. Para mim as linguagens diversas, aqui entendidas como estilos literários, são as ferramentas, ou meios de transporte, para esta colaboração mutualista autor-leitor na produção de serotonina e de catarse mental.

“O Rio do Meu Quintal” só foi possível graças ao Edital Gambira, da Lei Paulo Gustavo, executada pela Prefeitura de Cuiabá em 2024. Qual é, na sua visão, a importância das leis de incentivo para a produção e a circulação da literatura em Mato Grosso?

A. P. Pacheco – As políticas de incentivo à cultura são fundamentais sob vários aspectos. Eu avalio que o setor cultural no Brasil, de um modo geral, ainda é uma atividade econômica em desenvolvimento embrionário. Como estado periférico, Mato Grosso se ressente ainda mais dessa realidade. Não temos ainda um público consumidor de produtos culturais amadurecido, com dinheiro suficiente para que a indústria de arte funcione nos moldes desejados pelo capitalismo neoliberal. Daí a minha conclusão de que a arte é um direito básico do cidadão que deve ser assegurado pelo Estado. Sem o mecenato estatal, o amparo de políticas públicas de incentivo, é impossível que os artistas possam se dedicar aos estudos, as pesquisas, ao aprimoramento das técnicas, a produção e estruturação de produtos e serviços culturais e a levá-los até o grande público. As leis Paulo Gustavo e Aldir Blac , agora transformada em Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), e as políticas amparadas na Lei Rouanet, buscam dar um mínimo de oportunidade para que as artes e os artistas sobrevivam e possam ofertar à sociedade um gole de cultura no deserto da ignorância e da alienação que atravessamos. Sou otimista, no entanto. Acredito que por menores que sejam os recursos disponibilizados, por mais precários que ainda sejam os mecanismos de acesso à estes incentivos, a literatura brasileira, assim como outras manifestações artísticos culturais produzidas em Mato Grosso, tem dado ao público mostra de sua genialidade, de sua qualidade e potencial transformador.

Você tem defendido a ideia de que a literatura produzida em Mato Grosso precisa estar presente nas salas de aula, da educação básica até a universidade. Por que isso é tão urgente hoje?

A. P. Pacheco – Dentro do modelo capitalista de organização político-administrativa e social que vivemos, a formação, a conscientização e a educação cultural do público é o principal desafio para se assegurar a consolidação futura das artes como uma industrial autônoma e sustentável. Não faz sentido você ter políticas de incentivo à produção e distribuição de produtos culturais e não ter consumidores para estes produtos. É a lógica capitalista que impõe a necessidade basilar de se levar a cultural produzida em Mato Grosso para dentro das escolas, para as periferias. Pois é nelas que estão as crianças, os jovens e mesmo os adultos que irão formar o mercado consumidor de produtos culturais. Infelizmente, é muito difícil fazer as autoridades públicas compreenderem que o circuíto de valorização das artes, da cultura, só se completa se o livro, se a música, se o teatro, o circo, as artes plásticas, o cinema, o artesanato, a dança, etc. estiverem acessíveis e chegarem especialmente aos jovens, aos estudantes, aos trabalhadores que moram nas periferias, longe dos equipamentos culturais oficiais públicos ou privados.

O que este lançamento representa, na sua visão, para o cenário atual da literatura mato-grossense? E que caminho você enxerga para os escritores e leitores do estado nos próximos anos?

A. P. Pacheco – Como eu disse, sou otimista em relação ao futuro. Mato Grosso tem um vasto espaço a ser ocupado pela literatura. Novos e excelentes escritores estão, finalmente, conseguindo publicar seus livros e divulgá-los a muito custo. No entanto, a distribuição e o acesso à produtos literários ainda é muito falha. Isso poderia melhorar muito nos próximos anos caso as políticas de incentivo ao setor do livro passem a contemplar também projetos de circulação, difusão, distribuição de livros e formação de público leitor. No campo da organização dos autores, percebo que há uma movimentação crescente em direção a constituição e a uma tomada de consciência coletiva de classe. Com isso, acredito que estamos gestando uma maior organização da categoria no campo associativo, sindical, corporativo, o que é fundamental, indispensável mesmo, para que as autoridades políticas do setor cultural respeitem e olhem com atenção para as nossas reivindicações, paras nossas necessidades práticas. O lançamento deste meu novo livro é mais um tijolinho que colocamos na construção dessa ponte para um futuro menos árido na literatura em nosso estado e, por que não, em nosso país.