Oficina de cardápios tradicionais destaca riqueza alimentar e cultural do povo Rikbaktsa (MT)

A ação faz parte da implementação do turismo de base comunitária nos territórios do povo Rikbaktsa, na região noroeste de Mato Grosso.

Chichas de cará, banana da terra e milho fofo. Bolinhos de milho e de cará. Farinha de mandioca fresca. Beiju com banana na massa ou socado no pilão com milho fofo e feito na pedra. Peixes assados na folha de pacova. Esses foram alguns dos pratos preparados durante a oficina de cardápios tradicionais e culinária Rikbaktsa, que reuniu 22 mulheres, representantes de oito aldeias dos três territórios do povo Rikbaktsa.

Durante cinco dias, as participantes utilizaram ingredientes locais para o preparo de refeições tradicionais. “Foi uma oficina sem fogão, sem geladeira e sem equipamentos tecnológicos, mas com muita simplicidade, sabedoria ancestral, conhecimento da natureza e, sobretudo, um exercício de soberania alimentar aliado à identidade cultural”, relatou Neide Rigo, nutricionista responsável pela condução da atividade na aldeia Pé de Mutum, Terra Indígena (TI) Japuíra.  

Quando se trata de culinária Rikbaktsa, uma das participantes da formação, Daniela Manai Rikbaktatsa, da aldeia Parajuba, TI Escondido, revelou uma situação familiar que lhe despertou interesse particular sobre o tema. Sua mãe, Francisca, se recuperou de um quadro delicado de saúde após o médico receitar exclusivamente alimentação tradicional em seu tratamento. “Hoje ela já está bem, mas agora só come da nossa comida, tudo natural, então a gente aprende muitas receitas com ela”, ressaltou. 

A implementação do turismo de base comunitária está prevista no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) do povo Rikbaktsa. A oficina faz parte desse processo de estruturação e tem por objetivo fortalecer, por meio da valorização da alimentação tradicional, a capacidade de geração de renda e produção de alimentos.

“Não é só pensar no cardápio para as atividades do turismo, mas como os Rikbaktsa vão se organizar internamente para produzir esses alimentos, como vão se preparar para oferecer essas refeições e terem um preço justo com esse dinheiro ficando no território. Essa formação também tem a perspectiva de valorização da segurança alimentar”, comentou Camila Barra, consultora para negócios comunitários e gestão territorial, que também é responsável por orientar as ações de implementação da atividade turística.

Saberes e sabores

No primeiro dia da atividade, após uma conversa sobre espécies tradicionais, sazonalidade e conhecimentos gerais sobre alimentação nas aldeias Rikbaktsa, as mulheres foram convidadas a coletar ingredientes nos quintais e roças nos arredores da aldeia para montar um cardápio com tudo que estivesse disponível no local. Logo a mesa estava repleta de carás, bananas, urucuns, buritis, patuás, mandiocas e outras especiarias. 

A manhã seguinte começou com um mutirão para a feitura de beijus e farinha de mandioca. Descascar, ralar, espremer, esfarelar e peneirar. Todas as etapas de produção divididas sincronicamente entre pequenos grupos.

Foram preparados três tipos de beijus: apenas massa de mandioca, banana da terra verde misturada à massa e milho fofo e mandioca socados no pilão. Este último não é levado ao fogo sobre uma frigideira, mas sobre uma pedra plana arredondada só é encontrada no topo dos morros. 

O milho fofo é uma variedade crioula com espiga mais fina e grãos coloridos e macios. Na ocasião da oficina, os milhos foram adquiridos da família de dona Maria Luiza e seu Eriberto, que mantinham as espigas sobre a constante fumaça de um fogo tenro. “A fumaça que conserva”, comentou Maria Luiza enquanto cortava cocos de tucum para a feitura de artesanatos.

Ao fim da manhã, além dos três tipos de beijus, foi servido um cardápio com banana da terra, milho fofo e mandioca assados na mesma brasa utilizada para o preparo de peixes (pacu peva e piau). E um detalhe especial é que o beiju com massa de banana da terra verde e os peixes foram assados na folha de pacova, uma planta nativa bem parecida com a bananeira e que dá sabor e beleza aos pratos.

Finalizada a massa de mandioca, deram continuidade ao preparo da farinha no período da tarde. A massa peneirada foi despejada sobre um tacho preto com quase dois metros de diâmetro, posto, por sua vez, sobre brasa branda para não queimar ou grudar a massa. Duas mulheres por vez, munidas de rodos de madeira para não raspar o fundo do tacho,  iam mexendo e revirando incessantemente a massa, ao passo que uma conversa bem humorada temperava a atividade. 

Depois de histórias, risadas e cerca de duas horas de revezamento braçal, dona Berenice Wyidyk, da aldeia Acorizal, TI Japuíra, provou e aprovou a farinha: “Tá estalando de boa! Quando fica assim, bem sequinha, estala na boca”, detalhou. O ponto também foi elogiado por Neide Rigo, que a classificou como a mais fresca e deliciosa que já comeu, além de destacar que o processo de feitura seria um deleite aos turistas. 

Uma pitada de cores locais

O protagonista da manhã do terceiro dia foi o urucum, ou melhor, urucuns. Em rápida coleta pela aldeia, foram identificadas quatro variedades. “Nunca tinha visto esse de casca lisa e esse esbranquiçado”, revelou Neide Rigo. “Desse liso eu também não. Vou levar uns para minha aldeia”, complementou dona Berenice. Depois de comparar as variedades e os pigmentos de cada um, retiraram os grãos para feitura de colorau e óleo de urucum.  

O período da tarde foi dedicado aos pães, que não são um alimento tradicional, mas são consumidos cotidianamente nas comunidades. Neide sugeriu acrescentar uma pitada de ingredientes locais às receitas convencionais, e assim foram feitas três tipos de pães: um com o urucum adicionado à massa, outro com tinta de jenipapo diluída no leite e outro à base de cará, que poderia ser também batata doce, banana da terra, abóbora ou mandioca.

Não bastasse a fartura de pães, Liliane Painiu, da aldeia Cerejeira, TI Japuíra, ainda preparou um delicioso bolo de mandioca a partir de uma receita com poucos ingredientes (mandioca ralada, ovos, leite, manteiga, fermento e açúcar). Conforme os pães e o bolo eram retirados do forno, a comunidade se reunia sob a sombra de frondosas mangueiras no pátio central da aldeia. O sentimento geral era de encantamento e curiosidade, afinal alguns pães eram alaranjados e outros azulados, resultado do uso de urucum e jenipapo em seus preparos. 

Depois de comer, concluíram que o sabor e a maciez eram tão atrativos quanto às cores. “Temos muitos alimentos que a gente nem sabia que dava pra fazer, como urucum e jenipapo no pão. Espero que as mulheres continuem fazendo e cada uma leve para sua comunidade”, comentou Francisco Rikbaktsa, cacique da aldeia Pé de Mutum.

Chichas e a fartura de alimentos

O quarto dia foi dedicado à chicha, uma bebida tradicional muito saborosa e nutritiva feita a partir de diversos alimentos, que inclusive é consumida em qualquer refeição e faz parte do cotidiano das famílias. Alguns povos preparam a chicha fermentada, mas a dos Rikbaktsa é ferventada, ou seja, ligeiramente cozida até o caldo engrossar e assumir uma consistência pastosa entre mingau e pirão, permanecendo alguns pedacinhos sólidos que derretem na boca. É adoçada com açúcar ou mel e pode ser consumida quente ou fria.

As mulheres fizeram chichas de milho fofo, cará e banana da terra verde, mas também costumam fazer de batata doce, mandioca, inajá e outros alimentos. A bebida, excelente para dar sustância, normalmente é preparada em grandes recipientes e consumida em copos ou canecas. Na ocasião, foram servidas quentinhas com bolinhos fritos de milho fofo e cará, deixando o cardápio ainda mais irresistível. 

Para o último dia foi reservado um verdadeiro banquete. As mulheres se dividiram para colocar em prática tudo o que havia sido trabalhado durante a oficina. “Um grupo foi pescar pacu, piau e matrinxã, enquanto outro foi coletar patuá para a chicha. Uma chegou de moto com um saco de mandioca, enquanto outras vieram com folhas de pacova de quase dois metros. E a lenha foi sendo trazida para as fogueirinhas que cozinharam carás, tostaram os beijus, assaram mandioca e suportaram grelhas para os peixes”, relembrou Neide.

Assim, ao final da tarde, a mesa forrada com folhas de pacova sob as mangueiras estava abarrotada de pratos frescos e apetitosos cujas receitas foram trabalhadas ao longo da atividade. Cada participante da oficina também elaborou uma proposta de cardápio contendo fontes de proteína, carboidrato, gorduras saudáveis e fibras.

A nutricionista Neide Rigo está preparando um livreto com as receitas feitas durante a atividade para disponibilizar às mulheres. Além disso, foi criado um grupo em aplicativo de mensagens pelo qual as mulheres seguem trocando experiências e compartilhando diariamente pratos e receitas que fazem em suas respectivas aldeias.

Os passos para a implementação do Turismo de Base Comunitária

Em 2024, foi elaborado um diagnóstico participativo junto ao povo Rikbaktsa para avaliar os potenciais turísticos dos três territórios (TI Erikpatsa, TI Japuíra e TI Escondido). Após a conclusão do documento, estão sendo realizados processos formativos para iniciar a implementação do turismo de base comunitária.

A oficina de cardápios tradicionais e culinária Rikbaktsa, realizada entre os dias 11 e 15 agosto, evidenciou grande potencial para o turismo gastronômico e valorização da cultura alimentar. Além dessa formação, os Rikbaktsa também fizeram capacitações para condução de turistas, formatação de roteiros de imersão cultural e turismo de observação de pássaros. 

A estruturação do turismo de base comunitária está prevista no PGTA do povo Rikbaktsa e a implementação do PGTA é um dos eixos do projeto Berço das Águas, realizado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) junto aos povos Rikbaktsa e Apiaká, com patrocínio da Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental. Esta é a quarta edição do projeto, que tem apoiado, desde 2011, a gestão territorial de diferentes povos na bacia do rio Juruena.