*Bruna Santiago
Foi revogada na última semana de agosto a lei estadual nº 12.542/2024, sancionada em junho pelo governo do Mato Grosso. A norma vinculava a oferta do cuidado íntimo, como a troca de fraldas, roupa e banho a profissionais de Enfermagem do mesmo sexo do paciente.
Caso fosse implementada conforme o texto original, geraria prejuízos à carreira e às conquistas de décadas de nossa categoria. Assim, buscamos dialogar com os deputados estaduais para demonstrar a inconveniência desta legislação. Estivemos presentes na data das votações. Buscamos o apoio de toda a categoria nas redes sociais. Finalmente, nós, do Conselho Regional de Enfermagem do Mato Grosso, podemos nos orgulhar de ter obtido a revogação desta lei.
O texto original não era apenas uma manifestação flagrante da discriminação de gênero, mas também matéria imprestável à luz da Constituição Federal – que garante o livre exercício de atividade pelo profissional qualificado. Basta considerar alguns números relativos à profissão para entender que a lei violentava também a matemática.
Ora, se de acordo com o senso de 2022 há cerca de 51,5% de cidadãs mulheres para 48,5% de homens no Brasil, o cumprimento de tal norma é matematicamente impossível. É só levar em consideração a pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil (FIOCRUZ/COFEN, 2015), de acordo com a qual mais de 85% da força de trabalho da Enfermagem é composta de profissionais mulheres. Qualquer pessoa sensata vê que é uma impossibilidade estatística o cumprimento desta lei.
No entanto, números tão eloquentes não foram suficientes para inibir o trâmite desta lei. O projeto dela foi votado pelos parlamentares e sancionado pelo governo estadual em junho. Nos manifestamos imediatamente contra, divulgamos notas de repúdio e pedidos.
O sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem não se omitiu do seu papel diante da categoria. Não poderíamos permitir que uma visão equivocada, originada por uma questão ideológica, pudesse prevalecer contra a lógica e a justiça.
Mesmo assim, utilizando-se do subterfúgio de um pedido de vistas, alguns parlamentares da Assembleia Legislativa do estado do Mato Grosso conseguiram empurrar para depois do recesso de julho a votação definitiva que derrubaria a lei. Mas chegou o dia em que prevaleceu a lógica. Na sessão do dia 28 de agosto, a única parlamentar mulher na Casa, Janaína Riva (MDB), foi uma voz da razão no meio do absurdo.
“Tive três partos e tomei três anestesias, todas realizadas por médicos homens. Se formos aprovar uma lei contra a Enfermagem, temos que aprovar uma contra médicos também!”, declarou ela em plenário. Janaína ainda lembrou que a Enfermagem é uma categoria muito sofrida, especialmente levado em consideração o momento da pandemia de covid-19.
É indispensável deixar clara aqui a intencional discriminação de gênero. O texto da lei que ampara a profissão é eloquente sobre a impossibilidade de condicionar o exercício da enfermagem ao gênero do profissional, como está claro na Lei 7.498 de 1986.
Maior categoria profissional de Saúde, a Enfermagem sofre prejuízos históricos justamente pela maior presença de mulheres nos seus quadros. Convivemos diariamente com o desrespeito e a desvalorização do cuidado. Afinal, trata-se de um serviço que é costume das mulheres e que passa fora da contabilidade na economia do lar. A sexualização do cuidado com a saúde acrescenta ainda mais uma camada de preconceito.
Não podemos aceitar a concepção de que a segurança de um paciente seja determinada pelo sexo do profissional de saúde que lhe presta cuidado. Isso não possui nenhum respaldo legal, científico ou mesmo na lógica. Por tudo isso sequer podemos comemorar a revogação da lei. Apenas ressaltamos que é o prevalecimento da lógica, da matemática e da estatística mais básicas. E continuaremos sempre atentos, nossa luta continua.
*Bruna Santiago é enfermeira, mestre em Ambiente e Saúde e presidente do Conselho Regional de Enfermagem do Mato Grosso (Coren-MT)